(Para ler ouvindo Nada Será Como Antes, do Milton Nascimento)
Mais ou menos um ano atrás começou na minha vida um processo longo e permeado de dúvidas. Vivi meses de um sofrimento sem fim que, um dia, passou.
Foi em março, enquanto eu dançava com vários semelhantes, que prestei atenção no refrão vindo de tempos em que fui muito eu mesma: “I feel a little bit more like myself than I have in a long time”. E percebi que I actually did. I actually do.
A partir daí, o disco riscado mental dos questionamentos repetidos deu lugar a um monte de velhas-novas sensações. Brinquei com meus amigos que começava uma nova temporada na sitcom da minha vida — e ela, assim como acontece em muitas das minhas séries preferidas, teve como primeira cena a protagonista descendo de um avião.
Em uma viagem carioquíssima, acompanhada do Gabriel, tive a percepção incontestável de que tudo tinha mudado. E repeti diversas vezes, pra mim e pra ele, o lema intuitivo e quase vidente que marcou a nossa visita ao Rio antes mesmo de ela começar: nada será como antes.
E não foi, mesmo. Voltou pra minha garganta a sede de mundo que eu não me lembro quando senti pela última vez. Voltei ao marco zero 10 anos após o fim de uma era para viver o início da tal nova temporada que anunciei.
Passei os últimos meses registrando (em papéis e fotografias mentais) fragmentos de grandes alegrias — nada poético, puro fluxo de pensamento — e percebi que escrevo muito melhor quando estou triste. Uma pena.
Minha ausência desde o choro na rua se justifica por isso: estive feliz. Apesar da insatisfação com a qualidade dos meus escritos, tenho me sentido viva de formas que eu ignorava. Nesses meses contei minha história para desconhecidos (e, a partir disso, pude conhecê-los também), beijei novas bocas, descobri jeitos diferentes de perder o fôlego, respirei outros ares, prometi pra mim mesma que daqui a quatro anos eu volto pra ficar, dancei com a Madonna.
Também conversei inúmeras vezes com a minha psicóloga não só a respeito da euforia desses dias, mas principalmente sobre o fato de saber que this too shall pass.
This too shall pass — isso também vai passar. A consciência disso me ajudou a sobreviver a um número suficiente de momentos difíceis para ter certeza que passa, mesmo.
No mesmo tema e não à toa, um dos meus álbuns preferidos é o All Things Must Pass, do George Harrison. Só que é fácil esquecer dessa trilha sonora quando chegam os momentos bons. A euforia na rotina. O Rio e seus 40 graus de calor.
Dessa vez eu não esqueci — não esqueço. Mas vivo tudo isso sem esquecer também uma frase que é do García Márquez, e um pouco minha, porque cruzei com ela aos 14 anos de idade e nunca mais tirei da cabeça:
“Sea lo que sea, lo bailado no te lo quita nadie.”
Aconteça o que acontecer, ninguém te tira o que você já dançou — e eu, como te contei antes, recentemente dancei com a Madonna.
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de Sol
Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes, amanhã
O que eu li
O mesmo Gabriel que me acompanhou na viagem ao Rio foi quem, há alguns anos, me apresentou a Letrux — e disse que, na opinião dele, nós duas somos a mesma pessoa em universos diferentes.
Quando comecei a conhecer o trabalho dela, o comentário ganhou tom de elogio do tipo nossa-nem-sei-se-eu-mereço. Descobri que, apesar de não compartilharmos da faceta musical, já que eu perco o ritmo até nas palmas de “parabéns pra você”, temos em comum o biotipo (alta, magra, nariguda e esquisita com orgulho), mas também um caminhão de referências e a inclinação à escrita autobiográfica.
Te conto isso porque foi voltando do Rio de Janeiro que reconheci um livro no sebo. Um reencontro ocasional, que entrou na minha lista de coincidências significativas demais pra não acreditar que tem alguém ou alguma coisa dando uma piscadela pra mim quando acontecem.
Era o Tudo que já nadei: Ressaca, quebra-mar e marolinhas, livro da Letrux lançado em 2021. Mergulhar nas águas desse livro, nas palavras dessa outra eu, logo depois de ter passado dias regados a sal e sol, foi também um mergulho em mim. “Sou artista e preciso pecar”.
Como bem escreveu Rita von Hunty, no texto da orelha do livro: “algo de muito poderoso acontece quando uma mulher encontra o mar”. Recomendo esses encontros pra você — com o mar e com esse livro, da mulher que contabiliza os dias que viveu junto dele.
Você pode escutar a versão em áudio de Tudo que já nadei clicando aqui.
Da última vez que te escrevi, me despedi afirmando que voltaria dentro de uma semana — o que não aconteceu, visto que te escrevo hoje, três meses depois. Dessa vez, me despeço assim:
não sei quando, mas eu volto.
Boa semana pra você!